amores expresos, blog DO MATTOSO

quinta-feira, 5 de julho de 2007

DOSCIENTOSFUEGOS



(Camilo Cienfuegos em versão nacional e dolarizada)


Doña Magalis me recebeu com um robe de seda, bobes na cabeça, um batom lilás enfeitando a boca. Cantora bissexta de boleros, ela disse que se produzia para ir à igreja, mas não demorou para que eu percebesse que, independente do programa do dia, aquele era seu uniforme oficial. Desde que cheguei, minha anfitriã circula pela casa com o mesmo robe esvoaçante, a mesma cadência orgulhosa, o mesmo jeito despachado de dar ordens à família e aos empregados.

A casa de Magalis é uma das poucas autorizadas a receber turistas em Havana. A decoração inclui flores de plástico, elefantes de cerâmica, azulejos coloridos, um retrato em tamanho natural da proprietária. Ao fundo, numa espécie de edícula, estão dois quartos para aluguel, equipados com ar-condicionado, televisão e um dispensável chuveiro quente, além de um abajur dourado que acende com o toque e uma aquarela representando uma paisagem outonal. Esse templo do kitsch é, de longe, a casa mais vistosa da rua, ainda mais se comparada aos destroços da vizinhança.

O motivo do lar de Magalis ser tão diferente dos outros é um só: ela trabalha na única atividade realmente rentável da economia cubana. Um médico de carreira ganha algo como trinta dólares por mês; uma arrumadeira de hotel, só de gorjeta, pode ganhar isso em um dia. A cisão está exposta nas duas moedas que, hoje, fazem da economia cubana um exemplo único de esquizofrenia monetária.

O peso convertible, dolarizado, é a moeda dos turistas, dos hotéis, das lojas mais sofisticadas, dos táxis com ar-condicionado. O velho e combalido peso cubano está quase que exclusivamente nas mãos da população local, e serve para comprar os produtos essenciais, além de dar acesso ao transporte público e a alguns programas culturais. Um convertible vale aproximadamente 24 pesos cubanos, o que transforma a moeda nacional numa migalha quando confrontada com o dinheiro dos turistas.

Doña Magalis, é claro, recebe em convertibles. Isso faz dela uma espécie de magnata, ao menos em comparação com a vizinhança que não tem acesso às benesses da moeda dolarizada. Demorei um tempo para me acostumar ao manejo dos valores, saber em que circunstâncias usar cada moeda. Logo no primeiro dia, um amigo me ensinou um truque para diferenciar as cédulas: os convertibles são sempre coloridos, ao passo que os pesos cubanos costumam trazer uma tonalidade opaca e esmaecida. Não foi preciso muito esforço para que perceber que, mais que uma explicação, aquela era uma metáfora cruel e definitiva.