Pouca gente sabe, mas uma das maiores contribuições cubanas à cultura universal — ao lado da música, da literatura e das utopias modernas, entre outras — é a fila. Não me refiro ao alinhamento de pessoas tal qual o conhecemos no Brasil: em Cuba, a fila adquire outra dimensão, alçando-se ao posto de experiência filosófica e existencial. É uma pena que o fenômeno ainda não tenha sido devidamente disseminado pelo mundo.
Meu contato mais marcante com a fila cubana aconteceu há alguns dias, quando peguei a balsa no porto de Havana e desembarquei no distrito de Casa Blanca, no sopé do morro onde descansa o forte de Las Cabañas. Dali sai o Hershey, último trem elétrico de Cuba, batizado com o nome do milionário americano que o construiu nos anos 20 para transportar os funcionários dos engenhos de açúcar que municiavam suas fábricas de chocolate nos EUA.
O Hershey, hoje, é um trem decadente, com assentos faltando e um calor infernal assando os vagões. Estatizado pela Revolução, ele passou a servir como transporte público, interligando as cidades de Havana e Matanzas. Haveria muito a dizer sobre o percurso, os animais a bordo, as crianças mijando pela janela, as paradas bruscas a cada quinze minutos, o total de cinco horas para percorrer 100 quilômetros. O que importa aqui, no entanto, é menos a viagem do que o que a antecedeu.
Ao chegar à estação de Casa Blanca, me surpreendi com a ausência de pessoas nas cercanias do guichê. Logo constatei que ainda não estavam vendendo passagens, embora faltasse apenas meia hora para a partida. Resolvi ficar ali, de pé, guardando o primeiro lugar com uma mistura de orgulho e desconfiança. Vinte minutos depois, a funcionária tirou o pedaço de papelão que fechava o buraco no vidro e, mascando um palito, perguntou se eu era o primeiro. Respondi que sim, ao que ela soltou um suspiro e, com um meneio do queixo, apontou para fora.
— Chegou antes dessa gente?
Olhei para trás. A “gente” a que ela se referia eram cerca de cinqüenta pessoas espalhadas ao acaso, uns lendo jornal, outros deitados sob o sol, outros conversando, e não havia a menor indicação de que tinham algum interesse em comprar passagens, muito menos que faziam parte de algo semelhante a uma fila.
Engano meu. Ali, invisível aos olhos leigos, havia um sistema fechado, definido, dotado de lógica própria e cristalina. Aos poucos, uma a uma, as pessoas começaram a se levantar e ir ao guichê, comprando suas passagens sem pressa nem confusão. Tive que perguntar a alguém o que estava acontecendo, e a explicação que recebi foi de uma simplicidade perturbadora.
A fila cubana está baseada num sistema primário de comunicação. Ao chegar, o sujeito pergunta à multidão quem é o último. Este levanta a mão, o que é suficiente para que ambos se localizem e, assim, se elimine por completo a necessidade de enfileiramento, liberando as pessoas para que façam o que quiserem enquanto esperam por sua vez — e pronto.
Triunfo da entropia, a fila cubana é um exemplo para a humanidade. Perto dela, nosso alinhamento indiano é arcaico como uma escarradeira. Imagino o que não seria do planeta se esse fenômeno estivesse disseminado por aí, esmigalhando nossas noções de harmonia e linearidade. Parado em meio à estação, eu pensava em Mallarmé, na Via Láctea, na estrutura dos fractais, e assim continuaria se um estalo da consciência não tivesse me trazido de volta à realidade. Foi quando me aproximei da multidão, acumulei ar nos pulmões e exclamei, feliz por viver aquela experiência tão elementar quanto transcendente:
— El último?