amores expresos, blog DO MATTOSO

terça-feira, 9 de outubro de 2007

LACUNA INC.



Dois meses depois da volta, achei que era hora de postar alguma coisa por aqui, quem sabe até para dar um fim decente a este blog moribundo. Cheguei ao Brasil e me ofereci quinze dias de quarentena, sem pensar em Cuba, em livro, em nada. Era uma tentativa de deixar as lembranças se assentarem, amadurecer um pouco o olhar sobre minha temporada havanesa. Não funcionou: ainda hoje, as lembranças da viagem formam um corpo estranho dentro da minha cabeça, como se tivessem sido implantadas por um neurocirurgião do futuro. Estou na minha casa, em meio às minhas coisas, cercado por tudo aquilo em que sou capaz de me reconhecer, e pensar em Havana continua sendo tão estranho quanto caminhar por lá.

Foi quando percebi que meu plano não daria certo, ou seja, que eu não conseguiria desenvolver um olhar exatamente maduro sobre a viagem, que percebi que meu romance estava nascendo. O que me aconteceu não importa. A partir de agora, só me interessa o que pode se encaixar na história, o que dentro dela faz sentido e se justifica. Se a memória quiser colaborar, ótimo; senão, acho que meu cérebro não terá problemas em se virar sozinho.

Quer dizer: em termos. Também fica difícil, a essa altura do campeonato, traçar a fronteira entre o que é lembrança e o que não é. Viajar para escrever tem dessas coisas: a gente fica rodando a cidade, as idéias ficam rodando dentro da cabeça e ao final os limites entre o que se viu e o que se imaginou acabam tão tumultuados quanto as águas do Estreito da Flórida - e aí, bem, o melhor a fazer é relaxar e seguir tocando o barco.

Mudando um pouco de assunto, gostaria de avisá-los que no próximo dia 16 lançarei meu primeiro romance, pela editora 34. O convite vai abaixo. Quem quiser aparecer será muito bem-vindo. Até.





(clique na imagem para visualizar)

quinta-feira, 26 de julho de 2007

EL 26

E eis que o 26 de julho chegou, passou e está indo embora — e é como se nada tivesse acontecido. Se levarmos em conta o que prometiam os milhares de cartazes patrióticos espalhados pela cidade nos últimos dias, a decepção é ainda maior. Ao que tudo indica, os havaneses resolveram levar a sério a coisa do "Dia da Rebeldia Nacional" e, bem, deram uma banana às festividades oficiais.

A verdade é que me equivoquei duplamente com relação à data. Cheguei a adiar em uma semana a partida do Brasil, com o único objetivo de estar aqui nas comemorações do 54º aniversário da invasão do quartel de Moncada, que marcou o início "espiritual" da aventura revolucionária. Quando desembarquei em Havana, porém, me inteirei de que a festa não aconteceria necessariamente na cidade. Todos os anos, o governo cubano realiza uma espécie de concorrência entre as províncias, com o objetivo de aferir que região teve mais progressos econômicos e sociais ao longo dos últimos 12 meses. O prêmio ao vencedor é sediar a festa, com direito a desfiles oficiais e discursos do alto escalão governamental.

Pois bem. Na semana seguinte à minha chegada, começaram a pipocar cartazes na região de Habana Vieja com os dizeres: "26 de Julio - Somos La Sede". Dei o problema por resolvido, brindei à minha própria sorte e esperei pacientemente por este momento, na ingênua esperança de que algo fora do comum fosse acontecer: líderes em êxtase, multidões em combustão, quem sabe até uma aparição imprevista de Fidel Castro.

Nada. Nada vezes nada. Dez dias depois, descobri que Habana Vieja era apenas a sede distrital do evento, o que na prática não significa coisa nenhuma. Sede nacional mesmo era Camagüey, distante 534 quilômetros da capital. Ali Raúl Castro, hoje pela manhã, discursou em enxutas duas horas para uma praça apinhada de bandeirinhas e correligionários. Quanto a mim, restou caminhar pelo Malecón, tomando uma brisa na cara e ouvindo o silêncio preguiçoso que se abateu sobre a cidade. O 26, no fim das contas, acabou se assemelhando a um domingo antecipado, com toda a tranqüilidade e melancolia que a ocasião costuma carregar. É com esse clima que começo a me despedir deste blog, ao menos até a chegada a São Paulo, quando pretendo publicar alguma banalidade à guisa de conclusão. A gente se vê.

terça-feira, 24 de julho de 2007

ESTA FOTO



É para ela.

DE LETRAS E LOLITAS



A gente nunca espera por essas coisas. Magalis havia me avisado, mira, a artista não sou eu, você tem que falar é com aquela ali, ó. Eu já a tinha visto perambulando pelos corredores, sempre com a mão na barriga, sempre se queixando da recuperação da cirurgia no estômago, mas não podia imaginar que por trás daquela estampa frágil e carcomida existia Lolita López, diva internacional, dona de uma voz capaz de enternecer o mais congelado dos corações.

Não é novidade pra ninguém que Cuba é um país musical. Deve haver mais músicos em Havana do que designers em São Paulo, se é que me faço entender. Em pouco mais de vinte dias assisti a cerca de dez concertos, do jazz à salsa, do son ao reggaton, passando pela inesquecível versão de “My way” interpretada por um pianista de restaurante que era a cara do Raimundo Carrero — e que fez a canção soar como um inusitado hino revolucionário. O espetáculo mais memorável que testemunhei em terras cubanas, porém, aconteceu na sala da casa onde estou hospedado, entre paredes repletas de fotos, pôsteres e bandeirolas mexicanas, além de outros badulaques de difícil definição. Lolita López, “La voz ranchera de Cuba”, é responsável por performances memoráveis nos cabarés do país, sempre entoando clássicos do cancioneiro sentimental centro-americano — e foi esse repertório que ela apresentou no concerto improvisado.

“Deus me deu o dom da música mexicana”, exclama Lolita, que logo esclarece: não tem parentesco nenhum na terra de Zapata. “Apenas senti que através dessas canções podia expressar todo meu sentimento”. Que ninguém duvide disso. Quando Lolita abre a boca as louças tremem, os pontos cardeais se confundem, as órbitas planetárias se extraviam. Até Estela, que estava aqui fazendo imagens para um documentário sobre o projeto, acaba irremediavelmente atingida. Seu choro é contido pela própria Lolita, que se emociona com a reação da visitante e, bem, converte a sala num imenso vale de lágrimas.

O episódio com Lolita López foi apenas uma das inumeráveis surpresas que esta viagem me proporcionou. A maioria não entrou neste blog, algumas por falta de tempo, outras porque prefiro guardá-las comigo, fermentando na cabeça até o momento em que, transformadas em algo que ainda não sei o que é, se habilitem a virar ficção. Sim, já tenho uma história. Não, ela não tem nada a ver com transporte coletivo ou filas desconstruídas.

Este não é um último post. A viagem acaba em quatro dias, e ainda tenho uma ou outra coisa pra colocar aqui. O tempo fechou em Havana, o que é sempre uma boa notícia — o sol de julho inviabiliza qualquer caminhada mais longa entre as 13 e as 16 horas. Hora de fazer a alegria de meus calos. Até.

sexta-feira, 20 de julho de 2007

FOTOS










segunda-feira, 16 de julho de 2007

MALLARMÉ EM CASA BLANCA

Pouca gente sabe, mas uma das maiores contribuições cubanas à cultura universal — ao lado da música, da literatura e das utopias modernas, entre outras — é a fila. Não me refiro ao alinhamento de pessoas tal qual o conhecemos no Brasil: em Cuba, a fila adquire outra dimensão, alçando-se ao posto de experiência filosófica e existencial. É uma pena que o fenômeno ainda não tenha sido devidamente disseminado pelo mundo.

Meu contato mais marcante com a fila cubana aconteceu há alguns dias, quando peguei a balsa no porto de Havana e desembarquei no distrito de Casa Blanca, no sopé do morro onde descansa o forte de Las Cabañas. Dali sai o Hershey, último trem elétrico de Cuba, batizado com o nome do milionário americano que o construiu nos anos 20 para transportar os funcionários dos engenhos de açúcar que municiavam suas fábricas de chocolate nos EUA.

O Hershey, hoje, é um trem decadente, com assentos faltando e um calor infernal assando os vagões. Estatizado pela Revolução, ele passou a servir como transporte público, interligando as cidades de Havana e Matanzas. Haveria muito a dizer sobre o percurso, os animais a bordo, as crianças mijando pela janela, as paradas bruscas a cada quinze minutos, o total de cinco horas para percorrer 100 quilômetros. O que importa aqui, no entanto, é menos a viagem do que o que a antecedeu.

Ao chegar à estação de Casa Blanca, me surpreendi com a ausência de pessoas nas cercanias do guichê. Logo constatei que ainda não estavam vendendo passagens, embora faltasse apenas meia hora para a partida. Resolvi ficar ali, de pé, guardando o primeiro lugar com uma mistura de orgulho e desconfiança. Vinte minutos depois, a funcionária tirou o pedaço de papelão que fechava o buraco no vidro e, mascando um palito, perguntou se eu era o primeiro. Respondi que sim, ao que ela soltou um suspiro e, com um meneio do queixo, apontou para fora.

— Chegou antes dessa gente?

Olhei para trás. A “gente” a que ela se referia eram cerca de cinqüenta pessoas espalhadas ao acaso, uns lendo jornal, outros deitados sob o sol, outros conversando, e não havia a menor indicação de que tinham algum interesse em comprar passagens, muito menos que faziam parte de algo semelhante a uma fila.

Engano meu. Ali, invisível aos olhos leigos, havia um sistema fechado, definido, dotado de lógica própria e cristalina. Aos poucos, uma a uma, as pessoas começaram a se levantar e ir ao guichê, comprando suas passagens sem pressa nem confusão. Tive que perguntar a alguém o que estava acontecendo, e a explicação que recebi foi de uma simplicidade perturbadora.

A fila cubana está baseada num sistema primário de comunicação. Ao chegar, o sujeito pergunta à multidão quem é o último. Este levanta a mão, o que é suficiente para que ambos se localizem e, assim, se elimine por completo a necessidade de enfileiramento, liberando as pessoas para que façam o que quiserem enquanto esperam por sua vez — e pronto.

Triunfo da entropia, a fila cubana é um exemplo para a humanidade. Perto dela, nosso alinhamento indiano é arcaico como uma escarradeira. Imagino o que não seria do planeta se esse fenômeno estivesse disseminado por aí, esmigalhando nossas noções de harmonia e linearidade. Parado em meio à estação, eu pensava em Mallarmé, na Via Láctea, na estrutura dos fractais, e assim continuaria se um estalo da consciência não tivesse me trazido de volta à realidade. Foi quando me aproximei da multidão, acumulei ar nos pulmões e exclamei, feliz por viver aquela experiência tão elementar quanto transcendente:

— El último?

terça-feira, 10 de julho de 2007

"PARQUE CENTRAL?"

Nada pode ser mais complexo e cheio de articulações que o sistema de transportes havanês. Foi preciso alguns dias de estudo para compreendê-lo, e ainda assim continuo com a sensação de que falta alguma peça para completar o quebra-cabeça, que algo fundamental me escapou à atenção e eu não passo de um ignorante balbuciando generalidades.

Havana desenvolveu uma relação tão peculiar com o transporte público que o simples ato de parar numa calçada e estender o braço para a rua dá origem a um espectro quase infinito de possibilidades de locomoção. Há os meios tradicionais, como os guaguas, ônibus comuns que cumprem itinerários fixos, ou os táxis, que podem funcionar pelo taxímetro ou mediante um valor combinado com o motorista. Uma primeira variação é o coco-táxi, híbrido de triciclo e cabine telefônica que circula perigosamente entre os carros mas tem a considerável vantagem de proporcionar um pouco de brisa fresca ao turista mais combalido pelo calor caribenho.




Os camellos são um capítulo à parte. Precursores dos Transformers, esses seres mutantes são caminhões cujas carrocerias foram adaptadas para amontoar o maior número possível de passageiros. São uma invenção do Período Especial, os anos de miséria que se abateram sobre Cuba após o colapso soviético, e acabaram se incorporando definitivamente ao dia-a-dia do havanês. No camello não há contato direto com o motorista. O que acontece na carroceria fica na carroceria, e não são incomuns incidentes por ali, que acontecem sem que o condutor perceba. A aparência do camello é auto-explicativa:


Mas o fenômeno mais interessante nos meios de locomoção desta cidade está no transporte informal, feito exclusivamente por veículos particulares. Aí entram em ação as máquinas, que é como são chamadas as velhas e carcomidas carangas cubanas. Como se sabe, uma imensa frota de Cadillacs, Buicks, Thunderbirds, Pontiacs e Olsmobiles circula pelas ruas de Havana, boa parte deles fazendo dinheiro através do transporte ilegal da população.

Muitas vezes as máquinas obedecem a itinerários fixos, atravessando a cidade de uma ponta a outra, e embora não haja nenhuma indicação que as diferencie dos carros que não estão “a serviço”, basta fazer um sinal para que, segundos depois, uma dessas banheiras tremelicantes reduzam a velocidade e venham parar a seu lado. Como os itinerários variam, é preciso aproximar-se da janela e perguntar ao motorista se ele passa pelo seu destino. Logo nos primeiros dias, fui orientado a não me estender demais nesse contato: temendo a fiscalização, os motoristas costumam arrancar no primeiro sinal de indecisão do passageiro. Nada de “usted poderia informarme” ou “por favor, saberias decir se”. A coisa é direta:

— Parque central?

E a porta se abrirá ou não, dependendo da resposta. O preço da viagem é de dez pesos cubanos, e os carros normalmente andam apinhados de gente. É um sistema parecido ao da lotação brasileira, embora bem mais sujeito a adaptações: muitas vezes, as máquinas assumem o papel de táxis, ônibus turísticos ou simplesmente caronas remuneradas.
Há muito mais a se escrever sobre o tema, que se desdobra em inúmeras variantes e possibilidades. Mas lá fora faz sol, e a mocinha da internet me olha com cara de enfado, e minha barriga começa a pedir por algo sólido, gorduroso e de origem indecifrável. Melhor partir. Até mais.