amores expresos, blog DO MATTOSO

quinta-feira, 26 de julho de 2007

EL 26

E eis que o 26 de julho chegou, passou e está indo embora — e é como se nada tivesse acontecido. Se levarmos em conta o que prometiam os milhares de cartazes patrióticos espalhados pela cidade nos últimos dias, a decepção é ainda maior. Ao que tudo indica, os havaneses resolveram levar a sério a coisa do "Dia da Rebeldia Nacional" e, bem, deram uma banana às festividades oficiais.

A verdade é que me equivoquei duplamente com relação à data. Cheguei a adiar em uma semana a partida do Brasil, com o único objetivo de estar aqui nas comemorações do 54º aniversário da invasão do quartel de Moncada, que marcou o início "espiritual" da aventura revolucionária. Quando desembarquei em Havana, porém, me inteirei de que a festa não aconteceria necessariamente na cidade. Todos os anos, o governo cubano realiza uma espécie de concorrência entre as províncias, com o objetivo de aferir que região teve mais progressos econômicos e sociais ao longo dos últimos 12 meses. O prêmio ao vencedor é sediar a festa, com direito a desfiles oficiais e discursos do alto escalão governamental.

Pois bem. Na semana seguinte à minha chegada, começaram a pipocar cartazes na região de Habana Vieja com os dizeres: "26 de Julio - Somos La Sede". Dei o problema por resolvido, brindei à minha própria sorte e esperei pacientemente por este momento, na ingênua esperança de que algo fora do comum fosse acontecer: líderes em êxtase, multidões em combustão, quem sabe até uma aparição imprevista de Fidel Castro.

Nada. Nada vezes nada. Dez dias depois, descobri que Habana Vieja era apenas a sede distrital do evento, o que na prática não significa coisa nenhuma. Sede nacional mesmo era Camagüey, distante 534 quilômetros da capital. Ali Raúl Castro, hoje pela manhã, discursou em enxutas duas horas para uma praça apinhada de bandeirinhas e correligionários. Quanto a mim, restou caminhar pelo Malecón, tomando uma brisa na cara e ouvindo o silêncio preguiçoso que se abateu sobre a cidade. O 26, no fim das contas, acabou se assemelhando a um domingo antecipado, com toda a tranqüilidade e melancolia que a ocasião costuma carregar. É com esse clima que começo a me despedir deste blog, ao menos até a chegada a São Paulo, quando pretendo publicar alguma banalidade à guisa de conclusão. A gente se vê.

terça-feira, 24 de julho de 2007

ESTA FOTO



É para ela.

DE LETRAS E LOLITAS



A gente nunca espera por essas coisas. Magalis havia me avisado, mira, a artista não sou eu, você tem que falar é com aquela ali, ó. Eu já a tinha visto perambulando pelos corredores, sempre com a mão na barriga, sempre se queixando da recuperação da cirurgia no estômago, mas não podia imaginar que por trás daquela estampa frágil e carcomida existia Lolita López, diva internacional, dona de uma voz capaz de enternecer o mais congelado dos corações.

Não é novidade pra ninguém que Cuba é um país musical. Deve haver mais músicos em Havana do que designers em São Paulo, se é que me faço entender. Em pouco mais de vinte dias assisti a cerca de dez concertos, do jazz à salsa, do son ao reggaton, passando pela inesquecível versão de “My way” interpretada por um pianista de restaurante que era a cara do Raimundo Carrero — e que fez a canção soar como um inusitado hino revolucionário. O espetáculo mais memorável que testemunhei em terras cubanas, porém, aconteceu na sala da casa onde estou hospedado, entre paredes repletas de fotos, pôsteres e bandeirolas mexicanas, além de outros badulaques de difícil definição. Lolita López, “La voz ranchera de Cuba”, é responsável por performances memoráveis nos cabarés do país, sempre entoando clássicos do cancioneiro sentimental centro-americano — e foi esse repertório que ela apresentou no concerto improvisado.

“Deus me deu o dom da música mexicana”, exclama Lolita, que logo esclarece: não tem parentesco nenhum na terra de Zapata. “Apenas senti que através dessas canções podia expressar todo meu sentimento”. Que ninguém duvide disso. Quando Lolita abre a boca as louças tremem, os pontos cardeais se confundem, as órbitas planetárias se extraviam. Até Estela, que estava aqui fazendo imagens para um documentário sobre o projeto, acaba irremediavelmente atingida. Seu choro é contido pela própria Lolita, que se emociona com a reação da visitante e, bem, converte a sala num imenso vale de lágrimas.

O episódio com Lolita López foi apenas uma das inumeráveis surpresas que esta viagem me proporcionou. A maioria não entrou neste blog, algumas por falta de tempo, outras porque prefiro guardá-las comigo, fermentando na cabeça até o momento em que, transformadas em algo que ainda não sei o que é, se habilitem a virar ficção. Sim, já tenho uma história. Não, ela não tem nada a ver com transporte coletivo ou filas desconstruídas.

Este não é um último post. A viagem acaba em quatro dias, e ainda tenho uma ou outra coisa pra colocar aqui. O tempo fechou em Havana, o que é sempre uma boa notícia — o sol de julho inviabiliza qualquer caminhada mais longa entre as 13 e as 16 horas. Hora de fazer a alegria de meus calos. Até.

sexta-feira, 20 de julho de 2007

FOTOS










segunda-feira, 16 de julho de 2007

MALLARMÉ EM CASA BLANCA

Pouca gente sabe, mas uma das maiores contribuições cubanas à cultura universal — ao lado da música, da literatura e das utopias modernas, entre outras — é a fila. Não me refiro ao alinhamento de pessoas tal qual o conhecemos no Brasil: em Cuba, a fila adquire outra dimensão, alçando-se ao posto de experiência filosófica e existencial. É uma pena que o fenômeno ainda não tenha sido devidamente disseminado pelo mundo.

Meu contato mais marcante com a fila cubana aconteceu há alguns dias, quando peguei a balsa no porto de Havana e desembarquei no distrito de Casa Blanca, no sopé do morro onde descansa o forte de Las Cabañas. Dali sai o Hershey, último trem elétrico de Cuba, batizado com o nome do milionário americano que o construiu nos anos 20 para transportar os funcionários dos engenhos de açúcar que municiavam suas fábricas de chocolate nos EUA.

O Hershey, hoje, é um trem decadente, com assentos faltando e um calor infernal assando os vagões. Estatizado pela Revolução, ele passou a servir como transporte público, interligando as cidades de Havana e Matanzas. Haveria muito a dizer sobre o percurso, os animais a bordo, as crianças mijando pela janela, as paradas bruscas a cada quinze minutos, o total de cinco horas para percorrer 100 quilômetros. O que importa aqui, no entanto, é menos a viagem do que o que a antecedeu.

Ao chegar à estação de Casa Blanca, me surpreendi com a ausência de pessoas nas cercanias do guichê. Logo constatei que ainda não estavam vendendo passagens, embora faltasse apenas meia hora para a partida. Resolvi ficar ali, de pé, guardando o primeiro lugar com uma mistura de orgulho e desconfiança. Vinte minutos depois, a funcionária tirou o pedaço de papelão que fechava o buraco no vidro e, mascando um palito, perguntou se eu era o primeiro. Respondi que sim, ao que ela soltou um suspiro e, com um meneio do queixo, apontou para fora.

— Chegou antes dessa gente?

Olhei para trás. A “gente” a que ela se referia eram cerca de cinqüenta pessoas espalhadas ao acaso, uns lendo jornal, outros deitados sob o sol, outros conversando, e não havia a menor indicação de que tinham algum interesse em comprar passagens, muito menos que faziam parte de algo semelhante a uma fila.

Engano meu. Ali, invisível aos olhos leigos, havia um sistema fechado, definido, dotado de lógica própria e cristalina. Aos poucos, uma a uma, as pessoas começaram a se levantar e ir ao guichê, comprando suas passagens sem pressa nem confusão. Tive que perguntar a alguém o que estava acontecendo, e a explicação que recebi foi de uma simplicidade perturbadora.

A fila cubana está baseada num sistema primário de comunicação. Ao chegar, o sujeito pergunta à multidão quem é o último. Este levanta a mão, o que é suficiente para que ambos se localizem e, assim, se elimine por completo a necessidade de enfileiramento, liberando as pessoas para que façam o que quiserem enquanto esperam por sua vez — e pronto.

Triunfo da entropia, a fila cubana é um exemplo para a humanidade. Perto dela, nosso alinhamento indiano é arcaico como uma escarradeira. Imagino o que não seria do planeta se esse fenômeno estivesse disseminado por aí, esmigalhando nossas noções de harmonia e linearidade. Parado em meio à estação, eu pensava em Mallarmé, na Via Láctea, na estrutura dos fractais, e assim continuaria se um estalo da consciência não tivesse me trazido de volta à realidade. Foi quando me aproximei da multidão, acumulei ar nos pulmões e exclamei, feliz por viver aquela experiência tão elementar quanto transcendente:

— El último?

terça-feira, 10 de julho de 2007

"PARQUE CENTRAL?"

Nada pode ser mais complexo e cheio de articulações que o sistema de transportes havanês. Foi preciso alguns dias de estudo para compreendê-lo, e ainda assim continuo com a sensação de que falta alguma peça para completar o quebra-cabeça, que algo fundamental me escapou à atenção e eu não passo de um ignorante balbuciando generalidades.

Havana desenvolveu uma relação tão peculiar com o transporte público que o simples ato de parar numa calçada e estender o braço para a rua dá origem a um espectro quase infinito de possibilidades de locomoção. Há os meios tradicionais, como os guaguas, ônibus comuns que cumprem itinerários fixos, ou os táxis, que podem funcionar pelo taxímetro ou mediante um valor combinado com o motorista. Uma primeira variação é o coco-táxi, híbrido de triciclo e cabine telefônica que circula perigosamente entre os carros mas tem a considerável vantagem de proporcionar um pouco de brisa fresca ao turista mais combalido pelo calor caribenho.




Os camellos são um capítulo à parte. Precursores dos Transformers, esses seres mutantes são caminhões cujas carrocerias foram adaptadas para amontoar o maior número possível de passageiros. São uma invenção do Período Especial, os anos de miséria que se abateram sobre Cuba após o colapso soviético, e acabaram se incorporando definitivamente ao dia-a-dia do havanês. No camello não há contato direto com o motorista. O que acontece na carroceria fica na carroceria, e não são incomuns incidentes por ali, que acontecem sem que o condutor perceba. A aparência do camello é auto-explicativa:


Mas o fenômeno mais interessante nos meios de locomoção desta cidade está no transporte informal, feito exclusivamente por veículos particulares. Aí entram em ação as máquinas, que é como são chamadas as velhas e carcomidas carangas cubanas. Como se sabe, uma imensa frota de Cadillacs, Buicks, Thunderbirds, Pontiacs e Olsmobiles circula pelas ruas de Havana, boa parte deles fazendo dinheiro através do transporte ilegal da população.

Muitas vezes as máquinas obedecem a itinerários fixos, atravessando a cidade de uma ponta a outra, e embora não haja nenhuma indicação que as diferencie dos carros que não estão “a serviço”, basta fazer um sinal para que, segundos depois, uma dessas banheiras tremelicantes reduzam a velocidade e venham parar a seu lado. Como os itinerários variam, é preciso aproximar-se da janela e perguntar ao motorista se ele passa pelo seu destino. Logo nos primeiros dias, fui orientado a não me estender demais nesse contato: temendo a fiscalização, os motoristas costumam arrancar no primeiro sinal de indecisão do passageiro. Nada de “usted poderia informarme” ou “por favor, saberias decir se”. A coisa é direta:

— Parque central?

E a porta se abrirá ou não, dependendo da resposta. O preço da viagem é de dez pesos cubanos, e os carros normalmente andam apinhados de gente. É um sistema parecido ao da lotação brasileira, embora bem mais sujeito a adaptações: muitas vezes, as máquinas assumem o papel de táxis, ônibus turísticos ou simplesmente caronas remuneradas.
Há muito mais a se escrever sobre o tema, que se desdobra em inúmeras variantes e possibilidades. Mas lá fora faz sol, e a mocinha da internet me olha com cara de enfado, e minha barriga começa a pedir por algo sólido, gorduroso e de origem indecifrável. Melhor partir. Até mais.

quinta-feira, 5 de julho de 2007

DOSCIENTOSFUEGOS



(Camilo Cienfuegos em versão nacional e dolarizada)


Doña Magalis me recebeu com um robe de seda, bobes na cabeça, um batom lilás enfeitando a boca. Cantora bissexta de boleros, ela disse que se produzia para ir à igreja, mas não demorou para que eu percebesse que, independente do programa do dia, aquele era seu uniforme oficial. Desde que cheguei, minha anfitriã circula pela casa com o mesmo robe esvoaçante, a mesma cadência orgulhosa, o mesmo jeito despachado de dar ordens à família e aos empregados.

A casa de Magalis é uma das poucas autorizadas a receber turistas em Havana. A decoração inclui flores de plástico, elefantes de cerâmica, azulejos coloridos, um retrato em tamanho natural da proprietária. Ao fundo, numa espécie de edícula, estão dois quartos para aluguel, equipados com ar-condicionado, televisão e um dispensável chuveiro quente, além de um abajur dourado que acende com o toque e uma aquarela representando uma paisagem outonal. Esse templo do kitsch é, de longe, a casa mais vistosa da rua, ainda mais se comparada aos destroços da vizinhança.

O motivo do lar de Magalis ser tão diferente dos outros é um só: ela trabalha na única atividade realmente rentável da economia cubana. Um médico de carreira ganha algo como trinta dólares por mês; uma arrumadeira de hotel, só de gorjeta, pode ganhar isso em um dia. A cisão está exposta nas duas moedas que, hoje, fazem da economia cubana um exemplo único de esquizofrenia monetária.

O peso convertible, dolarizado, é a moeda dos turistas, dos hotéis, das lojas mais sofisticadas, dos táxis com ar-condicionado. O velho e combalido peso cubano está quase que exclusivamente nas mãos da população local, e serve para comprar os produtos essenciais, além de dar acesso ao transporte público e a alguns programas culturais. Um convertible vale aproximadamente 24 pesos cubanos, o que transforma a moeda nacional numa migalha quando confrontada com o dinheiro dos turistas.

Doña Magalis, é claro, recebe em convertibles. Isso faz dela uma espécie de magnata, ao menos em comparação com a vizinhança que não tem acesso às benesses da moeda dolarizada. Demorei um tempo para me acostumar ao manejo dos valores, saber em que circunstâncias usar cada moeda. Logo no primeiro dia, um amigo me ensinou um truque para diferenciar as cédulas: os convertibles são sempre coloridos, ao passo que os pesos cubanos costumam trazer uma tonalidade opaca e esmaecida. Não foi preciso muito esforço para que perceber que, mais que uma explicação, aquela era uma metáfora cruel e definitiva.

quarta-feira, 4 de julho de 2007

FOTOS



































segunda-feira, 2 de julho de 2007

VERDADES

Ainda não sei como olhar para esta cidade. Conforme o esperado, a Havana que fabriquei na minha cabeça é completamente diferente da Havana real. Me sinto observando uma fotografia borrada. Quando as coisas parecem começar a ganhar sentido, sou assaltado por uma impressão absolutamente diferente da primeira — e tudo volta a se esfacelar.

O verbo talvez seja apropriado. Havana, em boa parte de sua extensão, é uma cidade esfacelada. Ando rumo à casa de um amigo, aqui mesmo no bairro de Vedado, e a paisagem parece ter sido vítima de um bombardeio. Há calçadas arrebentadas, prédios carcomidos, fachadas desfiguradas. Entro num edifício, subo alguns lances de escada e à minha volta não há nada que não esteja remendado ou corroído.

A visão destes destroços fica mais irreal com a óbvia constatação de que não estão abandonados. Muito pelo contrário. Lá dentro vivem estudantes, médicos, advogados, artistas, aposentados, taxistas, funcionários públicos, todos levando sua vida, indo ao trabalho, ao cinema, à sorveteria, ao beisebol.

Ou a uma exposição de arte. No início da tarde, sou levado ao Museu de Belas Artes, onde acontece a abertura da mostra de Raúl Martínez, um dos precursores da — sim, ela existe — pop art cubana. O espaço do museu é moderno, limpo, acolhedor, e a exposição um sucesso. Saio dali e, depois de um chop-suey matador, completo a jornada num pequeno teatro onde se apresenta a peça Chamaco, de autoria de um jovem dramaturgo cubano. O espaço, mais uma vez, está apinhado de gente. A peça trata de prostituição, miséria, violência, e não há nenhuma referência à revolução ou ao regime. O espetáculo é ovacionado, e na saída, sentindo pela primeira vez uma brisa fresca em meio ao forno industrial que é esta cidade, fico tentando conjugar cada uma das realidades que testemunhei ao longo do dia.

Não dá. Pergunto o que acha meu amigo cubano. Ele solta um suspiro irônico e diz:

— Isso aqui não é uma ilha, meu caro. É um planeta.

A resposta é insuficiente, genérica, quase banal, mas desconfio que seja o mais perto que se possa chegar de alguma verdade — se é que essa palavra, aqui ou em qualquer outro lugar, ainda é capaz de fazer algum sentido.

domingo, 1 de julho de 2007

CHEGANÇA

O comissário de bordo, um panamenho careca cujo uniforme traz bordado o nome Onan, anuncia a chegada a Havana. É de noite, não estou na janela, é impossível ter qualquer idéia do que me espera em terra. Desço do avião, passo pela aduana, respondo a um par de perguntas de uma enfermeira levemente surda — e pronto. Estou aqui. Seja lá o que isso signifique.

Minhas primeiras impressões sobre Cuba são mais olfativas do que visuais. Cheiro de mato. Cheiro de mar. No táxi, uma rádio intercala clássicos do son com notas históricas sobre o país. Faço imagens tremidas dos muros por onde passo, todos forrados com mensagens revolucionárias. Ainda não são duas da manhã e a cidade está deserta. Talvez seja este lado da cidade, este bairro, sei lá. O fato é que, numa primeira e rudimentar impressão, Havana me parece uma doce cidade interiorana.

Tenho mais trinta dias para me contradizer. Vamos lá.